Menu ASAE

Políticas públicas para combater a fome

 Políticas públicas para combater a fome

Anderson André Silveira Rotuno e Robson Becker Loeck (*) 

Conforme a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU), em 2014, onze anos após a implementação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Brasil saiu do Mapa da Fome. O PAA, enquanto política pública, ou seja, ação governamental que possibilitou segurança e soberania alimentar para os brasileiros, foi deveras importante e eficiente no que se propunha.

Acontece que, a partir de 2020, de acordo com a FAO/Brasil, 19 milhões de brasileiros voltaram a ter fome. Recentemente, o site Olhe Para a Fome, informou que, agora, em 2022, esse número subiu para 33,1 milhões. Fica, então, a perplexidade com tão breve mudança, ainda mais, parafraseando a Banda Titãs, de que as riquezas são diferentes, mas a miséria é igual em qualquer canto. Num país produtor de alimentos e que exporta toneladas de grãos, não é fácil entender e, até mesmo inaceitável, que pessoas estejam em situação de insegurança alimentar. As razões apontadas pela FAO e Olhe Para a Fome para tal situação são a crise sanitária e econômica causada pela Covid-19 e a falta de execução dos programas de segurança alimentar e nutricional, os quais estão prontos e necessitam apenas de orçamento por parte do Governo Federal.

Nesse sentido, mesmo que de modo geral, cabe elencar a ocorrência das compras governamentais de alimentos por parte do Estado brasileiro em sua história recente, e que constituem, hoje, os chamados Mercados Institucionais. Ainda no século passado, o Convênio de Taubaté, consubstanciado no Decreto 1.489, de 6 de agosto de 1906, foi o primeira política pública de compra de produtos agrícolas e permitiu que o Estado adquirisse café para regulação do preço, tendo em vista a grande produtividade do grão naquele período. Desde lá, outras políticas públicas foram implementadas para o fomento da produção, do desenvolvimento tecnológico e da formação de estoque e regulação de preços. No entanto, é em 2003 que “nasce” o Programa de Aquisição de Alimentos com Doação Simultânea (PAA), operacionalizado pela Companhia Nacional de Abastecimento do Brasil (Conab). Com a especificidade do Artigo 19 da Lei 10.696/2003, torna-se uma política pública de aquisição de alimentos direcionada exclusivamente para agricultura familiar, com o objetivo de fomentar a produção dos agricultores e, ao mesmo tempo, retirar o Brasil do Mapa da Fome com o equilíbrio entre a oferta e a demanda de alimentos advinda dos brasileiros em situação de vulnerabilidade social.

O que foi feito lá em 1906, tem similaridades com o PAA de 2003: a) a criação de uma lei ou Política Pública que permitia o Estado brasileiro adquirir de produtores rurais; b) a intervenção do Estado para equilibrar a oferta e demanda; c) a garantia de um pagamento justo aos produtores rurais, com base em uma metodologia de elaboração de preços feita pelo Estado brasileiro. 

Importante também ressaltar embora nessa época já estivesse em vigor o PAA e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que é uma política pública de crédito subsidiado para os agricultores, o conceito de agricultor familiar era de maior utilização no âmbito acadêmico. Somente em 2006 essa situação se modifica, com a definição institucional presente no Artigo 3º da Lei 11.326. A partir daí ele que passa a “regrar” o que é um Agricultor Familiar, vindo a facilitar os entes executores de políticas públicas na aplicação das mesmas, como também a possibilitar a ampliação ou criação de novas políticas públicas, como, por exemplo, aconteceu em Pelotas. No município, em 2016, foi criada a Lei 6.388, que obriga as compras governamentais a adquirir 30% dos alimentos dos agricultores familiares, ainda que a sua simples existência não garanta de fato a sua efetivação.

Enquanto política pública, cabe registrar que o PAA serviu de base para a criação da Lei 11.947/2009, que reformulou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).  Desde então os alimentos adquiridos com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação devem ser provenientes em, no mínimo, 30% da Agricultura Familiar.

Passaram-se os anos e novidades relacionadas à segurança alimentar e nutricional foram sendo implementadas. Em 2011, com a Lei 12.512, o PAA deixou de ser uma ação dentro do Programa Fome Zero para se tornar uma política de Estado, regulando os mecanismos da execução e ampliando as suas modalidades com a instituição do PAA Formação de Estoque e de Aquisição de Materiais Propagativos. O Decreto 7.775/2012, traz mais duas modalidades: o PAA Compra Institucional e o PAA Municipal. Em 2015, o Decreto 8473 institui a obrigatoriedade de que as aquisições de todos os alimentos consumidos pelos órgãos federais sejam de, no mínimo, 30% oriundos da Agricultura Familiar.

Em 2021, o PAA é substituído pelo Programa Alimenta Brasil (PAB), e grande parte das legislações e resoluções anteriores acabam compiladas na Lei 14.284 e Decreto 10.880. A partir de então novas resoluções estão sendo publicadas regularmente pelo antigo Grupo Gestor do PAA (GGPAA), “rebatizado” de GGAlimenta em 2022, que é formado pelos Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Ministério da Cidadania, Ministério da Educação e Ministério da Economia, exigindo permanente atualização para quem dele quer participar.  

No entanto, apesar de todo arcabouço legal existente e da mudança de nome, a Conab não dispõe, na contramão do aumento da fome nos últimos três anos, de orçamento. E, em relação ao PAB Compras Institucionais (antigo PAA Compras Institucionais), obrigatório para os órgãos federais, a realidade não é animadora. Há dificuldades para o atingimento do cumprimento mínimo de aquisição dos 30% de alimentos da Agricultura Familiar e, muitas vezes, dificuldades dos órgãos para entender a sazonalidade de oferta dos alimentos e as alterações necessárias nos sistemas de gestão de prestação de contas para atender as normas do Programa.

Enquanto política pública, o PAB é um excelente “recurso” à disposição dos governantes para o combate à fome e à desnutrição, pois impulsiona a agricultura familiar e faz chegar os alimentos a quem precisa em forma de doação. Entretanto, os poucos recursos utilizados nos anos de 2021 e de 2022 foram disponibilizados aos municípios, sendo a Conab preterida. Ademais, além da falta de expertise de muitas gestões municipais com o PAB, por questões legais os municípios não podem adquirir os alimentos das cooperativas da agricultura familiar, que são as que concentram o maior volume de alimentos e, diferentemente da maioria das prefeituras, possuem estrutura logística para a sua distribuição.

Cabe registrar que no Rio Grande do Sul o maior montante destinado ao Programa foi de R$ 12.552.359,15, em 2012, e o menor, em 2018, foi de R$ 670.718,87. Desde 2021 não foram mais aportados recursos, ao mesmo tempo em que, em 2022, foram protocolados junto a Conab e estão em espera de contratação 51 projetos de cooperativas da agricultura familiar, no valor de R$ 10.534.296,85. 

A fome que volta a afligir os gaúchos e os brasileiros não é ideológica, e gera sofrimento e humilhação a quem passa. As políticas públicas podem reduzir drasticamente a insegurança alimentar e não estão em falta, sendo necessário que sejam executadas para modificar a desoladora atual conjuntura.

(*) Anderson André Silveira Rotuno, engenheiro agrônomo, e Robson Becker Loeck, sociólogo.