Quilombolas encontram barreiras na busca pelo direito à terra
Em Pelotas, no Rio Grande do Sul, famílias quilombolas não reivindicam direitos territoriais por medo de perder principal fonte de renda
Marlene Dias tem 53 anos e mora no Rio Grande do Sul, na zona rural de Pelotas, localizada a 262 km de Porto Alegre, com os filhos e o marido. Agricultora e dona de casa, dedica-se à lida doméstica e ao trabalho na lavoura para garantir o sustento de sua família. No entanto, apesar do trabalho duro, todos os anos tem de lidar com a incerteza de poder produzir seu alimento. Sem a posse da terra que cultiva, Marlene precisa buscar entre os vizinhos alguém disposto a arrendar um pedaço de chão para poder plantar.
No Quilombo do Algodão, trabalhar na terra de outros agricultores e não ter espaço para o plantio do próprio alimento não é uma realidade exclusiva da família de Marlene. Composta por 106 famílias, a comunidade do Algodão é reconhecida pela Fundação Cultural Palmares desde 2010, mas não possui titulação de terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Assim, resta aos quilombolas trabalhar por temporada nas lavouras vizinhas para garantir a subsistência o ano inteiro.
Por não dispor de território demarcado, o quilombo é organizado por núcleos situados em diferentes localidades da região gaúcha conhecida como Serra dos Tapes. Esses núcleos são compostos por aglomerações de famílias quilombolas pertencentes à comunidade, distanciados por terras de outros pequenos agricultores da região, a maioria de origem pomerana, italiana e francesa. “A maior parte das famílias [quilombolas] trabalha nas lavouras de tabaco, outras vendem a sua mão de obra para trabalhar no raleio ou na colheita de pêssego, e outras trabalham no que a gente chama de corte de mato, principalmente de florestas de eucalipto”, explica Robson Loeck, sociólogo da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater).
O presidente da Associação Quilombola do Algodão, Nilo Dias, conta que a comunidade não discute a possibilidade de demarcação territorial pelo receio de perder a principal oportunidade de trabalho das famílias. “Imagina o Quilombo do Algodão pedir um estudo antropológico para a titulação de terras quilombolas. A gente ia comprar uma briga justamente com as pessoas que dão o nosso emprego”, afirma Dias. A incerteza de amparo às famílias quilombolas que arriscariam perder sua fonte de renda é considerada um entrave na busca pelo direito à terra. “Se nós ficarmos um ano sem ter esse trabalho eventual na lavoura dos pequenos agricultores, quem não for embora vai morrer de fome. O poder público não vai trazer alimento para nós”, constata Nilo ao falar sobre o temor dos quilombolas.
INEFICÁCIA DOS PROCESSOS
O estudo antropológico citado por Nilo compõe uma das etapas do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que, por sua vez, é o primeiro passo do processo de titulação de território quilombola pelo Incra, e visa identificar os limites das terras de remanescentes de quilombos. A partir do levantamento feito, quando observadas incidências de imóveis privados na região atribuída aos quilombolas, inicia-se o processo de desapropriação dessas terras, que são avaliadas a preço de mercado, e adquiridas pelo Instituto para que sejam destinadas à comunidade.
O reconhecimento de posse dos remanescentes de quilombos sobre as terras que ocupam é um direito previsto pela Constituição Federal de 1988 (Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), sendo o Incra a instituição responsável pela titulação dos territórios. No entanto, para garantir a proteção desse direito, o instituto encontra uma série de dificuldades, que vão desde recursos operacionais até entraves burocráticos.
De acordo com Vanessa dos Santos, antropóloga e analista do Serviço Quilombola do Incra/RS, de 108 processos de regularização fundiária de territórios quilombolas abertos no estado até hoje, 70 ainda aguardam condições de recursos humanos e orçamentários para atender a demanda. Do total de processos, 71 foram iniciados em data anterior ao ano de 2010, segundo o Relatório de Avaliação da Superintendência Regional do Incra no RS (Controladoria-Geral da União, 2020).
Além dos recursos limitados, as etapas burocráticas previstas pela Instrução Normativa que rege o procedimento de titulação de terras quilombolas (IN 57/2009) também são apontadas como justificativas para a demora dos processos. “De uma forma geral, os processos de regularização de territórios quilombolas são complexos, exigem muitos estudos e levantamentos e incluem etapas com prazos para contraditório, e por isso demandam bastante tempo”, explica Vanessa. Os prazos mencionados consistem no período de 90 dias, após publicação do Relatório Técnico, para viabilizar a contestação dos resultados por terceiros que possam ser afetados em caso de desapropriações.
TRABALHO E DESIGUALDADE
A morosidade dos processos de titulação é somada à dificuldade de acesso a serviços básicos e à falta de oportunidades de emprego, criando obstáculos na busca de direitos para os moradores do Algodão. O sociólogo Robson Loeck afirma que as famílias do quilombo muitas vezes dependem da ajuda de vizinhos não-quilombolas para suprir necessidades básicas e garantir uma renda mínima. A abertura de um processo de demarcação territorial poderia ameaçar essa relação, aumentando a desigualdade existente. “Ao mesmo tempo que essas pessoas trabalham sem nenhum acesso a direitos trabalhistas, a uma carteira assinada, elas são gratas por lhe serem ofertadas essas possibilidades de trabalho”, explica Loeck. “Se não fosse isso, a situação delas seria ainda pior, porque elas não teriam o que fazer, não teriam outra fonte de renda a não ser o Bolsa Família”, acrescenta. A situação de Marlene expressa a análise feita pelo sociólogo. A agricultora conta que já precisou recorrer aos vizinhos para ir à cidade por motivos de saúde urgentes. O pagamento pelo transporte foi feito em dias de trabalho nas terras dos agricultores.
Hoje, Dona Marlene vive com a família em uma área menor que 1 hectare, onde cultiva uma horta e algumas árvores frutíferas. O desejo dela era ter uma área maior para plantar as sementes de feijão que recebe da Emater. “Às vezes eles trazem as sementes, mas a gente não tem onde plantar, temos que esperar o vizinho dar um pedaço de terra”, lamenta. Com isso, o alimento também é dividido. Marlene conta que a troca para pagar o espaço de terra cedido é feita pela partilha de sua colheita. “A gente planta na terra do vizinho, e divide a metade com ele. Se produzimos dois sacos, um é dele e outro é nosso”, explica.
Autora: Luísa de Oliveira Ximendes – Estudante de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia