Menu ASAE

Agroecologia, agrotóxicos e a doença do cachorro louco

 Agroecologia, agrotóxicos e a doença do cachorro louco

Por: Leonardo Melgarejo*

Como todos sabemos, ainda que o mistério disso vá além do que compreendemos, existem relações de parentesco entre todos os animais e inclusive destes com os vegetais. No caso dos mamíferos é mais simples de perceber: basta olhar um cachorro dormindo para entender que ali ele alcança dimensões que muitos pensam ser exclusivas dos humanos. Os cachorros sonham como nós. Dormindo, eles resmungam, mexem as pernas, percorrem universos imaginários. O que nos autoriza assumir que não aconteceria algo parecido, em intensidade diferente, com os insetos ou com as plantas?

Sabemos que os insetos escolhem as plantas que atacam e que as árvores sentem o que acontece em volta delas e se comunicam a respeito disso. E sabemos que perdemos a capacidade de perceber o valor destas conexões com nosso afastamento da natureza. Por isso, em nossa ignorância, usamos venenos para destruir ligações que são fundamentais para nossa saúde física e mental. Desta forma, ligações que a vida estabelece como esta dos sonhos, que percebemos facilmente nos humanos e nos cachorros, e que os índios interpretam como de conexões com os espíritos, vão ficando mais e mais fora do nosso alcance e compreensão.

Se tratam de sabedorias perdidas ou ainda não descobertas, que por isso descartamos supondo que não seriam reais. Mas no caso de nossa conexão profunda com os cães, ninguém tem dúvidas. Eles, com frequência, “adivinham” o que pensamos, como por vezes nós fazemos com pessoas muito próximas. Talvez pela convivência, pelo afeto historicamente construído, pelo acompanhamento, e pela compreensão mútua desenvolvemos facilmente amor pelos cães e ódio, medo ou indiferença por outros seres. Não importam aqui as razões. Quem tem ou teve um cachorro como amigo, sabe do que estou falando. Eles oferecem amor e compromisso incondicional em troca de nada. E isso só mudará se o cachorro enlouquecer. Um cachorro “louco” se transforma em outro animal.

A hidrofobia (a “raiva”) é uma zoonose (virose que pode afetar todos os mamíferos, inclusive os humanos) que se transmite por contato com a saliva, as fezes, o sangue, a urina ou até mesmo por meio da lambida carinhosa de um animal infectado (Hidrofobia (raiva) – Mundo Educação (uol. com.br)) . A Covid-19, a gripe aviária e a peste suína também são algumas das muitas zoonoses que confirmam nosso parentesco com outros animais. Doenças que compartilhamos e que podem ser evitadas, com isolamento e com vacinas, que também podem levar à morte e que não têm “cura”, no sentido tradicional de que (depois de infectado) bastaria tomar um remédio para se livrar do problema.

As viroses são prevenidas com cuidados pessoais, isolamento e vacinas. Não são (e provavelmente nunca serão) “curadas” com remédios. Mas elas podem ser evitadas ou podem ser minimizadas em termos de seu impacto, reforçando as defesas do organismo atacado. E este reforço se dará pelo fortalecimento dos indivíduos, através de vida saudável, com alimentação adequada, com ou sem reforços de fármacos, mas sempre visando colaborar com o funcionamento do organismo atacado.

Mas vamos voltar para a doença do cachorro louco, a raiva. Ela decorre de distúrbios no sistema nervoso central do animal. Provocados por um vírus, estes distúrbios, que ameaçam a todos os mamíferos tiverem contato com um animal doente, podem ser evitados com vacinas. Então, vacinações em massa, dos cães e gatos, protegem inclusive os humanos de alterações que se expressam através de evolução da agressividade, do medo, da ansiedade e que levam a uma depressão profunda que evolui para a loucura e a morte. Vejam que na base do problema estão os impactos sobre o sistema nervoso central. Temos ali uma progressão de alterações que levam a desvios no comportamento animal. Eles se isolam, rompem com todas as parcerias, atacam quem se aproxima para ajudar e acabam perdendo a possibilidade de amar o próprio dono.

 E é sobre isso que pretendemos refletir, lembrando que somos aparentados e que no limite de cada animal, todos são regidos por um sistema nervoso central. Quem ainda não viu sintomas parecidos com aqueles apresentados pelos cães raivosos em pessoas que sequer foram contaminadas pela hidrofobia? É ou não é verdade que a agressividade, o medo, a ansiedade e a depressão exageradas têm sido cada vez mais comuns em nosso meio?

Nos, humanos, como em todos os animais, danos sobre o sistema nervoso levam a alterações comportamentais. E nesta explicação é secundário o fato destas alterações serem causadas por doenças, por estresses ou por contaminações químicas asseguradas pelos alimentos que comemos, pelas águas que bebemos ou pelos trabalhos que realizamos. Percebe-se que entre alguns humanos com o sistema nervoso avariado por agrotóxicos, diferentemente do que ocorre com os cachorros atacados pela raiva, surgem tendências ao suicídio.

E, hoje, sabemos que o medo, a ansiedade, a depressão e os suicídios são crescentes no meio rural. E aí está a ligação das frases anteriores com nosso tema. Existem estudos mostrando que mais e mais pessoas estão se suicidando no meio rural, e que isso parece relacionado ao uso de agrotóxicos (Liberação de agrotóxicos pode agravar taxas de suicídio no meio rural (redebrasilatual.com.br). Embora no suicídio se encerre o limite destes dramas individuais, seus sintomas   iniciais   são   terríveis o suficiente para infernizar a vida das famílias, traumatizando amigos, filhos e vizinhos. Quem viveu sabe o horror que ali se encerra. Um cachorro louco é sempre sacrificado. Mas uma pessoa “endoidecida”, por calma e pacifica que seja, sacrifica os outros.

E esta é apenas uma imagem para ilustrar a complexidade e a universalidade dos dramas relacionados ao uso de agrotóxicos. A lista inclui vários tipos de câncer, paralisias, cegueiras, alterações reprodutivas e hormonais, fraquezas, tonturas, dores de cabeça, debilitações permanentes e mortes (:: Dossiê Abrasco – Os impactos dos Agrotóxicos na Saúde ::). É claro que os agricultores são mais ameaçados, até porque vivem nas regiões onde é maior o uso de agrotóxicos, e onde os problemas crescem de forma mais grave.

Alguns estudos que mostram que há agrotóxico fluindo das mães, no amor da amamentação ao peito, para seus bebês. Mas estes venenos circulam por meio dos fluxos de água, dos alimentos, do ar e da chuva. E no Brasil se usa perto de um bilhão de litros de agrotóxicos por ano, de modo que ninguém – das cidades ou dos campos- está livre dos riscos. Estes venenos são produtos de síntese química. Moléculas que na maioria dos casos não existem na natureza. Os organismos não sabem disso e sempre que têm contato com elas procuram dar um “uso” para aquelas substâncias. Os agrotóxicos são encaminhados para os sistemas digestivo, circulatório, imunológico, reprodutivo, nervoso, etc. E ali provocam distorções em operações vitais. Alterações nos processos de sinalização bioquímica, de divisão celular, de comunicação nervosa, de percepção, e de reações metabólicas necessárias à ativação ou     interrupção de mecanismos biológicos. Isto induz a desequilíbrios e desencaminhamentos progressivos, não raro sem possibilidade de retorno.

Tomamos conhecimento de apenas dois casos de intoxicação com agrotóxicos em cada 100 ocorrências. As intoxicações agudas, aquelas que percebemos de pronto, são raras em relação aos casos sorrateiros, insidiosos, que comprometem dimensões essenciais para a sociedade humana, no plano da saúde, do amor, dos sonhos e da afetividade. Por trás disso está a traição. A desumanidade com que pessoas a serviço dos interesses econômicos que lucram com os venenos, atuam para nos iludir, ocultando o mal que os agrotóxicos trazem para nossas vidas.

Vejam um fato triste: em todas as análises de água considerada adequada para o consumo humano, têm sido encontrados resíduos destes venenos. Em muitos casos, de dezenas de tipos de venenos. O que pensar da água que circula nos corpos que a filtram para nutrir os sistemas metabólicos? Ou da água que circula nos rios e alimenta os lagos e os aquíferos, onde beberão nossos bisnetos?

E o que pensar dos governos, dos senadores, deputados, vereadores, prefeitos e juízes que deveriam zelar pela democracia, pela justiça e pelo respeito à lei, pela defesa dos direitos e necessidades humanas, ameaçadas pelos agrotóxicos? Bom, sempre esperamos que eles não de deixem capturar por interesses que comprometem o presente e o futuro de todos nós. Mas com frequência nos decepcionamos. No governo Bolsonaro já foram aprovados 1229 novos agrotóxicos, com apoio do Senador Heinze. No Governo Leite e com apoio de muitos deputados, avança o vergonhoso PL260/2020. Este PL visa anular uma defesa legal assegurada aos gaúchos pelo voto unânime dos parlamentares que nos representavam, em 1982.

A degradação qualitativa de nossos representantes, que podem aprovar este PL, implicará no direcionamento, para nosso território e para nossos corpos, de lixos tóxicos que se tornaram baratos nos mercados internacionais porque já não são aceitos outros locais do planeta. Mais uma traição inaceitável (https://www.brasildefators.com.br/2021/06/11/ as-mascaras-o-trigo-a-boiada). Até porque sabemos que existem alternativas. Com políticas públicas voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar e em apoio à agroecologia, poderemos construir bases efetivas para a segurança e soberania alimentar de nosso povo e assim alcançar outro patamar civilizatório. Somente proibindo a contaminação do solo sadio, da água, dos alimentos e dos corpos, por agrotóxicos, conseguiremos evoluir para um estágio superior, de pessoas comprometidas com as bases da vida. Para isso, é necessário refletir sobre o que estão fazendo estes representantes da sociedade que nos tratam como pessoas descartáveis, demonstrando ter por nossa saúde um tipo de desprezo que nem cachorros sem dono merecem receber.

* Leonardo Melgarejo é Engenheiro Agrônomo e membro do Grupo de Estudos em Agrobiodiversidade (GEA); associado aposentado da Asae, também foi o Primeiro Secretário da Asae na gestão 1992/1994.  Artigo publicado em Outubro de 2021 na revista: Agricultura Familiar e a 44ª Romaria da Terra. Tema: Agricultura Familiar e Agroecologia: Sinais de Esperança.