Duas autoridades e a confissão de nossas dificuldades
Por Antonio Cesar Perin (*)
“O Estado tem várias ações esparsas que buscamos conectar, desde o manejo do solo, reservação de água, questões ambientais. Entendemos que a complexidade dessa amarração pode ser melhor resolvida com o apoio técnico de uma organização que tem legitimidade, como a FAO”, apontou o governador Eduardo Leite.
Adolfo Brito deixou o encontro otimista: “Apresentamos as dificuldades que o RS tem enfrentado (pela estiagem), e que nos últimos anos se caracterizaram pelas perdas de grande parte da produção nas propriedades”. (Correio do Povo: 18/04/2024 | Mauren Xavier)
Tomo essas duas colocações retiradas do Jornal Correio do Povo para servir de apoio às considerações que farei a seguir.
O modelo econômico no qual estamos inseridos tem mostrado seus limites, tanto sob o ponto de vista de sua sustentabilidade econômica quanto no âmbito da sustentabilidade ambiental.
Voltemos ao mapa do RS e suas regiões, com distintas matrizes econômicas, climáticas, aptidões vocacionais, etc. Daí nascem mais algumas interrogações complementares às colocadas pelas autoridades:
Primeira: as dificuldades de amarração das ações são de natureza organizativa e administrativa; depois, são de ordem técnica. Em termos técnicos, a convivência com as adversidades climáticas vem de longa data. Mecanismos já consagrados, dos quais a EMATER, as Empresas de Pesquisa, as ONGs e as Universidades já dominam com desenvoltura. Daí surge a indicação de que é preciso voltar a discutir essas temáticas dentro dos COREDES (Conselhos Regionais de Desenvolvimento) e das Associações de Municípios, espaço organizativo institucionalizado que precisa ser ampliado. Os COREDES devem ser as instâncias descentralizadoras de Coordenação das Unidades Municipais, de onde se pressupõe também discussões amplas, políticas públicas de convivência com a estiagem e outras manifestações climáticas (sobretudo enchentes), causadas pelas mudanças climáticas já estabelecidas.
Reportando-nos às paisagens do RS propriamente ditas, devemos nos perguntar onde estão localizadas as grandes bacias provedoras, captadoras e fornecedoras de água do nosso AGROECOSSISTEMA. As paisagens dos Campos de Cima da Serra, com seus municípios inseridos nos COREDES, são merecedoras de políticas públicas, articulações e alocação de recursos para bem preservar o provimento do ciclo das águas de nossa Província e contenção do manancial excedido. Para isso, a remodelação do ICMS ecológico é uma necessidade. O ICMS Ecológico é um mecanismo tributário que busca incentivar os municípios a promoverem ações de preservação dos recursos naturais, mas precisa ser aprimorado.
Municípios conservacionistas, provedores das Bacias Hidrográficas, devem ter recursos diferenciados para manutenção de suas paisagens. Acompanhando os córregos e rios que compõem suas bacias hidrográficas, devem haver programas aos moldes de trabalho nos quais a EMATER tem “expertise” de longa data: PROGRAMA DE MICROBACIAS e outros. Ações integradas a partir do seu nascedouro! Compreender a estiagem e os excessos de chuva a partir do ciclo das águas e de sua dinâmica, da sua retenção no solo pelo processo de retenção de carbono. Compreender que sua dinâmica está rápida demais na natureza, valorizando os aspectos técnicos do manejo de solo, do sistema de Plantio Direto, conservação das matas ciliares, APPs e da importância da matéria orgânica.
Temos esse conhecimento. Portanto, dispomos desse aparato científico e tecnológico. O que falta é aprimorar as políticas públicas e ampliar as ações dentro dos COREDES, nos Comitês das Bacias Hidrográficas, para que se implementem na ponta, nas diferentes paisagens do RS, atos concretos. Trata-se de um mutirão gerencial, orquestrado na Capital, mas com os pés em cada canto do RS, dentro das instâncias de governança comunitária com os atores regionais, locais, Prefeitos, Sindicatos, Cooperativas, Universidades, Entidades Empresariais, EMATER, EMBRAPA, etc.
Essa é a visão integradora necessária. A FAO é bem-vinda sempre, mas temos conhecimento autóctone no CONTINENTE de SÃO PEDRO e no Brasil.
Quanto às enchentes, é mais que necessário dinamizar as regiões hidrográficas. O Artigo 171 da Constituição Estadual estabeleceu um modelo sistêmico para a gestão das águas do Rio Grande do Sul, e a Lei Estadual 10.350/1994 regulamentou esse artigo, estabelecendo que para cada uma das 25 bacias do Estado deve haver a formação de um comitê de gerenciamento, o Comitê de Bacias Hidrográficas. Esses Comitês transpassam os COREDES. São instâncias ainda mais abrangentes e precisam também ser respeitadas e dinamizadas.
Segundo aspecto: salientar que as estiagens e as enchentes não são fatalidades, são realidades postas de forma escancarada. Uma vez aplicado todo o conhecimento científico e técnico existente, resta a importante colocação que está na essência da antiga AGRICULTURA FAMILIAR: A DIVERSIFICAÇÃO. O MAIOR SEGURO QUE TEMOS para os períodos de estiagens. Quanto às inundações e enchentes, o processo é mais amplo e depende de muitas variáveis anteriormente mencionadas.
É estarrecedor verificarmos nossa dificuldade de governança. É estarrecedor ainda não aplicarmos o conhecimento conservacionista e preservacionista existente. É estarrecedor observarmos práticas agronômicas vindas bem atrás dos produtos comerciais na prioridade das propriedades. É estarrecedor não compreendermos ainda a inexistência de pesquisa de materiais genéticos adaptados a essa nossa realidade climática. É estarrecedor ver pequenas propriedades enterradas na monocultura. É estarrecedor vermos o CÓDIGO FLORESTAL não sendo respeitado e implementado. É estarrecedor verificar a não obrigatoriedade de existência de Plano Diretor em cidades com menos de 20.000 habitantes.
Precisamos retomar o velho roteiro: apropriar-nos do que já temos dentro de nossa vasta pesquisa agronômica, ecológica, meteorológica e legislação institucional, e voltar a discutir o básico nas governanças regionais, sobretudo nos COREDES e nos Comitês de Bacias Hidrográficas. Para Putnam (2002, p.162), “a participação cívica sempre vem antes da prosperidade”. Que venha a FAO e que ela saiba compreender nossa história, mas não há desenvolvimento sustentável sem processos participativos e de criação de processos de pertencimento ao processo político. Isso vai muito além de planilhas.
Sugestão de leitura:
Entendendo a matéria orgânica do solo em ambientes tropical e subtropical (EMBRAPA). https://www.alice.cnptia.embrapa.br/alice/handle/doc/1153147
Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna (Putnam). https://editora.fgv.br/produto/comunidade-e-democracia-a-experiencia-da-italia-moderna-1565
ICMS ecológico como ferramenta de proteção ambiental: análise da aplicação no Estado do Rio Grande do Sul. https://www.redalyc.org/pdf/4675/467546204035.pdf
Uma reflexão sobre mudanças climáticas, riscos para a agricultura brasileira e o papel da Embrapa. https://www.ufes.br/conteudo/entrevista-carlos-nobre-afirma-que-mudancas-climaticas-sao-o-maior-desafio-da-humanidade
(*) Antonio Cesar Perin é Engenheiro Agrônomo e Extensionista Rural.