Asae Entrevista: Carolina Thomson, autora da tese que analisa os ciclos da Ater no Brasil
Nas últimas semanas a Asae publicou em suas redes sociais uma série de cards sobre a extensão rural no Brasil, utilizando informações constantes na tese “(Im) possibilidades da Extensão Rural para a agricultura familiar: uma análise dos ciclos de Ater no Brasil”, de autoria de Carolina Rios Thomson. Carolina é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestra em Agroecologia e Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal de São Carlos (2014) e doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.
Com intuito de reforçar o que já fora divulgado nas postagens, a Asae apresenta agora uma entrevista com a autora.
Em sua tese, defendida recentemente, você delimita três ciclos da Assistência Técnica e Extensão Rural no Brasil, você pode falar brevemente sobre cada um deles?
R. São mais de três ciclos. O primeiro, da época das ACARs, é o período que outros pesquisadores denominaram como a época do “Assistencialismo Humanista” na extensão rural. O segundo, da época da criação da Embrater e transformação das ACARs em Ematers no regime militar, chamamos de “Difusionismo Produtivista”. Por fim, na época da redemocratização, no fim da década 1980, há o ensaio de uma “nova” extensão, quando foi concebida uma proposta baseada numa abordagem “Humanista e Crítica” da extensão rural. No entanto, após a extinção da Embrater na década de 1990 e o abandono federal às Ematers, essa última proposta acaba por ser adiada. Somente mais tarde, no primeiro governo Lula, com a elaboração da Pnater (Política Nacional de Ater), é que o Humanismo Crítico começa a ser posto em prática acrescido dos princípios agroecológicos. Eu me aprofundei na análise da execução da Pnater e identifiquei que a política nasceu com um propósito inovador, mas foi sendo desvirtuada, readequada e desmantelada ao longo dos anos. A Pnater terminou por incorporar um pouco de cada um dos três ciclos históricos anteriores. Minha análise teve o recorte de 2004 (quando foi iniciada a sua execução) até o final de 2022. Assim, a Pnater pode ser subdividida em mais três outros ciclos, baseados em três marcos referencias. A primeira fase da Pnater, de 2004 a 2009, se refere ao período em que era executada pelo MDA via Convênios ou Termos de Repasse – com bastante gestão da Sociedade Civil via Comitê de Ater do Condraf. Esse período foi guiado pelo Humanismo Crítico e pelos princípios agroecológicos. Nesse período diferentes entidades de extensão foram contratadas pelo ministério e os recursos foram desconcentrados, bem como foi a época em que a maior quantidade de contratos de Ater foi executada. A partir de 2010, identifiquei uma segunda fase da Pnater, com o estabelecimento das Chamadas Públicas e uma nova gestão do MDA – que tornou a extensão crescente subsidiária das políticas de combate à pobreza. Essa fase acrescenta e recupera muitas orientações do Humanismo Assistencialista, ao mesmo tempo que começa a afastar a Sociedade Civil da gestão da extensão federal. A partir de então, os recursos aumentaram, mas a concentração de entidades prestadoras de Ater também. Além disso, as Chamadas Públicas se revelaram um instrumento engessado, produtivista e problemático em diversos outros aspectos. Mesmo assim, a Pnater ainda era respeitada e o MDA mantinha alguma forma de diálogo com a Sociedade Civil via Condraf. Em 2016, com o golpe parlamentar e a extinção do MDA, essa fase se encerrou. Em 2017, quando a Anater passa a efetivamente atuar, se inicia a terceira fase da Pnater. Na prática, os princípios da política foram abandonados, a gestão participativa se tornou nula e os princípios agroecológicos ignorados. Esse período foi marcado pelo corte nos recursos federais para a extensão, pela concentração de empresas privadas de maior parte ganhando as Chamadas Públicas e pelo afastamento das empresas públicas da Anater – especialmente nas gestões do governo Bolsonaro. Além disso, o Senar entrou em cena, abocanhando considerável parte dos recursos da Anater em Convênios de Ateg. As metodologias e princípios da extensão de fato prestada pela Anater entre 2017 e 2022 remontam ao período do Difusionismo Protuvista – por ter sido bastante verticalizada, tecnocrata e sem gestão social.
Seu trabalho mostra que, ao longo dos anos, ocorreu um processo de concentração de entidades prestadoras de Ater? Qual foi o papel da Anater nesse cenário?
R. A Anater foi concebida pelos ruralistas e não pelos mesmos grupos que idealizaram a Pnater. A agência foi concebida ainda em 2013, mas só passou a efetivamente executar seus trabalhos em 2017. Por causa disso, por exemplo, incluiu os médios produtores entre seu público a ser atendidos além da agricultura familiar. Na prática, abandonou e ignorou critérios de histórico de atuação e experiência das entidades nos territórios, terceirizou o acompanhamento da execução dos projetos e privilegiou entidades privadas de grande porte. A partir da gestão via Anater, as entidades que mais ganharam Chamadas Públicas não tinham histórico relevante durante os anos anteriores em que a Pnater vinha sendo executada. Além disso, as que mais receberam recursos executaram Chamadas em diversos estados da federação. A extensão virou um “negócio”.
Quais governos foram mais generosos no repasse de recursos financeiros para a Ater pública? E, como se deu a entrada no Senar (que faz parte do Sistema S) na “disputa” desses recursos?
R. As gestões da Dilma foram as de maior aporte de recursos na Ater via Dater/MDA, mas, como eu disse anteriormente, não foi o período em que mais se “qualificou” a extensão. Já o Senar, esse entrou em cena a partir de 2018 com um decreto que agregou dentre as suas finalidades, além do ensino e aprendizagem rural, a prestação de Ateg (Assistência Técnica e Gerencial). O Senar então estabeleceu Convênios com a Anater os quais, na prática, abocanharam os recursos que até então vinham sendo destinados às empresas públicas de Ater via Instrumentos Específicos de Parceria. Na minha visão, o Senar entrou em cena para deslegitimar e concorrer com as empresas públicas de Ater, porque se ele se tornar “o” prestador de Ateg, qual o sentido de manter as empresas estaduais? Afinal, o Senar é um serviço já pago pelos produtores…
Você avalia que os recursos públicos estão indo parar no lugar certo? Quem teria mais propriedade para utilizar os recursos do governo federal para realizar a Ater: as entidades privadas ou as entidades públicas/governamentais?
R. Na minha opinião, se o sistema de extensão for bem gerido ambas são complementares. As empresas públicas têm uma abrangência e capilaridade sem igual, mas em diversos estados foram amplamente sucateadas e têm dificuldades na reposição de quadros, plano de carreira, folha de pagamento, etc. Além disso, falta uma formação em extensão participativa, agroecológica, etc. Na minha pesquisa eu identifiquei que muitos extensionistas dessas empresas são engajados e comprometidos com a agricultura familiar, mas é uma luta solitária e desafiadora. Eu acredito que o Dater/MDA precisa investir muito na capacitação desses extensionistas e na valorização da Ater agroecológica. Ao mesmo tempo, precisa privilegiar essas empresas nos recursos para ao menos apaziguar o avanço do sucateamento da extensão pública. Por outro lado, acredito que o MDA – via Anater – vai precisar sim contratar entidades não estatais para complementar a extensão a ser prestada no país, porque a proposta original da Pnater é a de universalizar a extensão gratuita voltada a agricultura familiar – e em diversos territórios as empresas públicas não dão conta dessa meta. No entanto, as entidades não estatais precisam ser selecionadas criteriosamente e um dos critérios primordiais é que tenham raízes no território e uma equipe técnica bem preparada para atender aos objetivos dos projetos, especialmente aqueles que envolvam populações tradicionais, jovens, mulheres, etc.
Como a Asae e demais entidades representativas estaduais dos trabalhadores e das trabalhadoras de Ater (associações e sindicatos), e a própria Faser, devem atuar para evitar retrocessos e se avançar em direção a uma extensão rural pública que atenda de fato a agricultura familiar?
R. Na minha opinião são duas as frentes de luta. A primeira é que urgentemente estabeleçam parcerias com os grupos envolvidos na concepção da Pnater, os movimentos sociais, as entidades não estatais e todos os outros comprometidos com uma extensão inovadora, participativa e agroecológica adequada especificamente à agricultura familiar. Esses grupos, em aliança, podem exercer pressão política, mobilizar parlamentares e pressionar por alterações na Lei da Anater, bem como ocupar o Condraf e pressionar o governo por recursos, transparência na gestão e redemocratização dos recursos da extensão. A bancada do Boi e da Bala já faz isso muito bem e há muito tempo, não à toa conseguiram trazer o Senar para concorrer com as empresas públicas, bem como cooptar o processo de criação da Anater desde o princípio. Internamente, eu acredito que seja papel das entidades representativas dos trabalhadores e trabalhadores da extensão investir na formação política dos afiliados, porque eu acho que ainda falta uma consciência crítica no sentido de entender porque a agricultura familiar precisa de uma extensão específica para ela e porque a extensão pública só tem razão de ser se servir a agricultura familiar. Falta uma leitura política clara de como e por quais razões os ruralistas querem o fim da extensão pública e gratuita. Isso envolve muitos aspectos, desde a questão produtiva até a fundiária. Ainda em relação às empresas públicas, acredito que precisam se mobilizar em seus estados por um fundo de Ater estadual.